quarta-feira, 26 de março de 2014

A terrível ironia dos 40 anos

A vida tem ironias terríveis. No próximo mês vamos viver uma dessas ironias.
Os 40 anos do 25 de Abril vão ter à cabeça da sua celebração oficial precisamente quem nada tem ou teve que ver com esse momento histórico. As celebrações oficiais vão ser dirigidas por quem tudo tem feito e fará para destruir o que de mais relevante foi alcançado com o movimento social e político gerado pelo golpe de Estado que pôs fim a quase meio século de ditadura e de estupidez ideológica.
Os actuais detentores do poder político e os actuais protagonistas do poder económico nada têm que os ligue ou aproxime das ideias e dos objectivos que estiveram na base da revolução operada na sociedade portuguesa após o 25 de Abril. Toda a acção das elites que actualmente dominam o país está orientada para uma finalidade prioritária: fazer retroceder até limite do possível — isto é, até onde o jogo de forças sociais e políticas o permitir — as benfeitorias económicas e sociais que a maioria da população alcançou com o derrube da ditadura.
Mas para que o grau de concretização deste objectivo seja elevado e duradoiro, as nossas elites sabem que é necessário, ao mesmo tempo, operar uma radical inversão dos valores ideológicos, políticos e éticos que têm prevalecido na nossa sociedade desde 1974. A valorização da equidade, da solidariedade, da igualdade; a valorização do Estado, enquanto expressão organizada de uma vontade colectiva; a valorização das funções públicas, enquanto serviço comprometido com o bem comum; todas estas valorizações precisam de ser vilipendiadas e diabolizadas para que em lugar delas surjam novas/velhas valorizações:
i) a valorização da desigualdade, enquanto pretensa inevitabilidade decorrente das diferenças individuais e enquanto alegada forma de premiação do mérito e de punição dos «incapazes»;
ii) a aceitação da injustiça social, enquanto pretensa inevitabilidade decorrente da vida em sociedade;
iii) a valorização do individualismo, enquanto suposta expressão suprema da liberdade;
iv) a valorização da designada «iniciativa privada», enquanto arquétipo de vida;
v) a valorização do enriquecimento, enquanto sinal de sucesso pessoal;
vi) a valorização da tecnicidade, em detrimento das artes e das humanidades;
vii) a valorização da caridade, em detrimento da co-responsabilização social.
As nossas actuais elites sabem que é necessário realizar esta inversão de valores — tarefa a que têm dedicado o seu máximo esforço — para que a política de violento retrocesso social que estão a levar a cabo possa manter-se.
E são precisamente estas elites que, com uma ironia que indigna, vão presidir às comemorações oficias dos 40 anos do 25 de Abril.